Entre os inúmeros
costumes franciscanos a saudação Paz e Bem é, certamente, um dos mais apreciados
e divulgados. Sua origem vem assim testemunhada pelas nossas fontes.
1Como
saudação, ele mais tarde testificou que aprendera, por revelação do Senhor, a
saudação “O Senhor te dê a paz”. 2Por
isso, saudava o povo, no exórdio de cada pregação, anunciando a paz.3É
certamente admirável e não para admitir sem milagre que, antes de sua
conversão, para anunciar esta saudação, tivera um precursor, o qual andava
freqüentemente por Assis, saudando deste modo: “Paz e bem. Paz e bem”. 4Disto acreditou-se firmemente
que, assim como João, preanunciando Cristo, desapareceu começando Cristo a
pregar, assim este, como outro João, precedeu o Bem-aventurado Francisco na
anunciação da paz, o qual, também, após a vinda do mesmo, não apareceu como
antes.
5Imediatamente, pois, o homem
de Deus Francisco, inundado do espírito dos profetas segundo a palavra
profética, logo após o seu mencionado arauto, anunciava a paz, pregava a
salvação, por suas salutares admoestações, muitos que, discordes de Cristo,
viviam longínquos da salvação, uniam-se na verdadeira paz (LTC 26).
Segundo esta narrativa, a Paz anunciada pelo Precursor de Cristo,
João Batista, e retomada, depois, por Francisco e toda sua descendência, está
íntima e profundamente enraizada não apenas nos primórdios da Encarnação, mas
também dentro de sua dinâmica, de seu processo. Isso significa que só haveremos
de compreender o que seja saudar alguém, desejando-lhe Paz e Bem, se buscarmos
sempre de novo o que significou para Cristo vir-a-ser um Deus humanado,
inserido-se e encarnado-se na vida e na condição do homem.
Acontece que nós, hoje, depois de vinte séculos, estamos um tanto
ou muito distanciados do significado puro e originário deste mistério, o mais
profundo, difícil, exigente, duro e inaudito, que um Deus pode se propor e
assumir. No usual de nossa espiritualidade, hoje, costumamos amenizá-lo com
figuras de “Meninos Jesus” meigos e adocicados, deitados em presépios de palhas
douradas, ou, ainda um Cristo “Super Star” arrastando multidões atrás de si
pelo encanto de suas pregações e milagres. Não vemos mais, a exemplo de
Francisco, as agruras, os apertos que passou desde o presépio, quando desnudo
foi posto sobre o feno, entre o boi e o burro, até, depois de perseguido,
maltratado, injuriado, esbofeteado, morrer crucificado como maldito de Deus
entre os dois ladrões.
O que fazemos com Jesus
Cristo, fazemos, também, com outras tradições cristãs e franciscanas.
Arrancamo-as de seu habitat natural de onde nasceram e cresceram: a pura,
simples, jovial e agradecida exposição à fragilidade, pequenez, mortalidade,
maldade e finitude humana. Por isso, costumamos amenizá-las com sorrisos ou
discursos light e facilitados a modo dos propagandistas do consumismo moderno.
Até mesmo nossos famosos I Fioretti se transformaram em literatura-moda,
de mera edificação e passa-tempo de pessoas satisfeitas e bem sucedidas,
espiritualmente. Muitos desses nossos costumes ou exercícios passaram a ser
apreciados e praticados não tanto pelo o que eles são, contêm e revelam, mas
muito mais como recursos ou meios para satisfazer nossos interesses
piedoso-sentimentalistas, nossos consolos e buscas de segurança espiritual,
quando não para uma simples e mera terapia. Assim foi e aconteceu também com
nossa saudação franciscanaPaz
e Bem! Perdeu o mordente da jovialidade da vida encarnada na dureza
agreste da Terra dos homens.
Paz, então, passou a ser entendida como o
estado de alma envolvido de serenidade pela ausência de conflitos, perturbações
e contrariedades, e que, geralmente, desemboca em sentimentos aguados de
pacifismos e pacificações; uma paz que se assenta em meros acordos
convencionais consigo mesmo ou com os outros que nos tira da luta pelo pão de
nossa existência, que deve ser conquistado a duras penas e com o suor do nosso
rosto. Enfim, paz tornou-se sinônimo de calmaria de águas paradas. E, todos
sabemos, água parada, cedo ou tarde, tende à dinâmica da poluição e podridão.
Bem por sua vez virou mero sentimento de
comodidade segundo o qual tudo funciona muito bem, dentro dos padrões de um
bem-estar humanista e/ou “espiritual” da publicidade consumista. Em outras
palavras, dizemos estar bem quando tudo funciona de acordo com as exigências
pré-estabelecidas por nós ou pela organização padronizada da sociedade clerical
e/ou religiosa na qual vivemos ou participamos.
Ora, tudo isso é o contrário, o avesso ao misterioso caminho
percorrido por Cristo, o Príncipe da Paz, desde sua concepção até a
Crucificação. Nele Paz e Bem se apresentam como arriscado, duro e exigente
processo de busca, nascimento, crescimento, amadurecimento e consumação de uma
existência humana nova que se perfaz na dinâmica de uma obra: o vir-a-ser, ou
florescer, do nosso Humano. Um vir-a-ser que se assemelha às minúsculas
sementes lançadas pelo vento no meio de pedregais, matagais e espinhedos do hisotirar-se
do nosso humano. Como essas, exposto às agruras, intempéries e vicissitudes da
vida, nosso humano empenha-se em existir, em vir-a-ser no frescor e na alegria,
na valentia singela do florescer por florir, sem porquê nem para que, entregue
de boa vontade à gratuidade da vida. Eis o vir-a-ser do Deus Humanado, deitado
no presépio ou peregrino e forasteiro pelos povoados da Samaria e da Judéia
e/ou, ainda e finalmente, padecente na Cruz, na Eucaristia, na Igreja, em cada
criatura ou acontecimento: o princípio, a fonte, a raiz da Paz e do Bem!
Obra, ou operação, deve
ser entendida, aqui, como o frutificar do trabalho, da labuta de toda uma
existência que se insere, se encarna em cada estância do viver humano. Aliás,
saudação ou saudar, antes de gesto, ou palavra, de cumprimento através do qual
se demonstra cortesia, admiração, respeito, desejando algo de bom, significa
convocação para o mundo, o mistério, a obra da saúde, da paz e do bem, dentro
da qual cada criatura já está, pelo fato de ser concebida e cuidada pela
simples existência. Não proclamava o Senhor: Olhai os lírios dos campos, as
aves do céu…? Nesse
sentido, cada criatura ou ser é sumamente Paz e Bom. Nada do
que existe é ou existe fora desse princípio ou vigor: o simples e originário
mistério do viver, ou a fulgurante e gloriosa jovialidade do ser.
Esse mistério, ou obra, porém, para nós humanos, não existe como
fato ou ocorrência, mas como convocação ou conquista de uma possibilidade que
nos é oferecida a modo de graça.
Quando, pois, esse modo de surgir, crescer, amadurecer e de ir se
perfazendo chega à sua consumação plena dizemos que ele ficou bom, pronto, no
ponto, maduro. O latim expressa esse fenômeno com a palavra “Bonum”.
Literalmente, “Bonum” significa o “Bom”, isto é o modo de ser de quem per-faz
todo o seu caminho, seguindo fielmente sua finitude; é o bem per-fazido, que
não ficou pela metade, meio-a-meio, e que a tradição franciscana traduziu pelo
termo “Bem”. Esse modo de inserir-se na vida, de assentar-se no lugar e no modo
de ser próprio do cultivo da liberdade humana (ser livre para) é a realização
humana, a bem-aventurança evangélica, a perfeita alegria franciscana: a Paz, o
Bem.
Dentro desse modo de
viver, portanto, não é a liberdade de escolha e de opção – apanágio do nosso
humano – que nos conduz à plenitude da realização humana. Fosse assim, os
demônios seriam as pessoas mais felizes e realizadas do mundo. Ao invés, esse
modo de ser da liberdade evangélica experimenta as agruras, os empecilhos, as
cruzes e vicissitudes do caminho como convite e exercício para que termine e se
transforme no modo de ser da necessidade de ser livre na decisão. Na medida em
que o homem se firma e amadurece nesta decisão sua existência entra no
mistério, na obra que Francisco, seguindo o Evangelho, proclamava: Pax
et Bonum!
Assim como na Criação Deus faz surgir do caos o mundo, a ordem, a
harmonia, a Paz, o Bem; assim como na Encarnação o Verbo eterno do Pai entra em
profunda comunhão com a existência humana, inaugurando o novo Céu e a nova
Terra de Paz e de Bem em meio aos inimigos tendo-os como amigos; assim como
outrora Francisco, hoje nós em vez de agentes e promotores da Paz e do Bem
somos convocados a apenas acolhê-los na oferta que fazem de si mesmos em toda e
qualquer criatura, acontecimento ou pessoa, também e principalmente naqueles ou
por aqueles que nos causam empecilhos, maltratam, ferrem ou levam à morte (Cf.
CM).
Para a conquista dessa
graça, porém, é preciso que trabalhemos primeiro fazendo bem o
necessário-inevitável expresso nos afazeres cotidianos mais simples e comuns
como ter que levantar, acordar, comer, beber, dormir, cuidar dos afazeres
domésticos, das nossas doenças, virtudes e defeitos, nossas funções e
compromissos, etc. E nisto tudo, começando sempre pelo possível, em paz. Logo,
então, no tempo oportuno, ser-nos-há dado o impossível per-fazido na paz e no
bem: Pax et Bonum!
Frei Dorvalino Fassini, OFM
Frei Dorvalino Fassini, OFM
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